Das neves 
Josette lassance
outubro de 2016.


Conheci DAS NEVES em Limondeua, dentro de um espaço de tempo em que levei minha mãe para um passeio pelas estradas perdidas da Amazônia. Das neves tem sessenta anos e seu marido é um professor de matemática autodidata.

Limondeua parece um risco no mapa, um risco quase imperceptível que se perdeu no meio do nada. Mas um dia fora um oásis dentro da floresta e abrigava o rio onde aprendi a nadar.

Das neves tomava café quando chegamos, eu, minha mãe e Paulo, um veterinário amigo, conhecido há mais de vinte anos.  Das Neves foi amizade à primeira vista. Daquelas que você se compreende apenas através da alma.

Não sou uma pessoa amigável, porque desacredito na formalidade e minha percepção de profundidade é feita de um denso novelo, tecido aos poucos com a convivência. 

Porque para mim, amigo é amigo, e não tem tempo ruim quando se é verdadeiro e intenso.

Amigo não tem cor, nacionalidade, sexo, idade ou dinheiro, e nada me influencia no quesito aparência.

Das neves foi assim. Fora passar um mês com sua mãe enferma que não anda há muitos anos e vive numa rede. Uma senhora simpática e sorridente, que de primeira, percebi ter gostado de mim.

Seu pai, um velho pescador aposentado, que me sorriu pela primeira vez depois de algumas tentativas, e depois que sorriu, abriu suas aventuras me relatando como seria a rotina de um pescador. 

Penso que para ser pescador, em primeiro lugar, tem que ser munido de esperança e coragem, e enxergar através das estrelas.

Das neves me levou para conhecer seu quintal, cheio de galinhas gordas e árvores frutíferas. Havia alguns pés de café e das neves foi buscar uma cuia para colhermos alguns grãos para eu fazer mudas em casa, na tentativa de sentir seu aroma verdadeiro, adormecido e puro, sem as esdrúxulas misturas químicas das fábricas. 
Café sempre significou algo sagrado para mim, porque dele são sagrados os rituais dos encontros, das conversas, da união e de um pedaço de oásis perdido nas cidades,onde poderia caber várias porções de afeto.

Das neves caminhou comigo todos esses dias que passei com minha mãe revendo seus amigos e compadres. 

Paulo precisou viajar na segunda feira. 

E das Neves o substituiu, me trazendo abrigo, jogos e gargalhadas.

Durante as tardes, saíamos para longas caminhadas pela estrada, como duas peregrinas.

Nessas caminhadas conversávamos muito. Da luta com sua mãe, da indiferença dos irmãos e de sua vida simples de aposentada como funcionária da biblioteca da união espírita.

Das neves é uma mulher rica. Tem um marido e uma filha. Tem a felicidade e a simplicidade de quem distribui carinho e compreensão. Parecia uma irmã mais velha.

Então depois das quatro da tarde nos arrumávamos e íamos nós, pela estrada empoeirada da aldeia, onde um vento quase seco me desarrumava os cabelos.

Eu apanhava um galho seco da mataria, para servir de arma ou de bastão de caminhada.

A estrada era perigosa. Por lá passavam pessoas de bem e bandidos que fugiam das cidades.

O sol parecia derreter. A última colina mostrava a casa-fazendola dos Torres, abandonada e desbotada; a mãe, o pai, os cachorros, todos haviam morrido enquanto o último filho fechava a porteira. Toda casa tem uma história e as histórias das casas são histórias das vidas.

Em frente à casa dos Torres, ruínas da biruta ornamentavam a passagem para o campo de aviação. 

Dentro do campo, uma casa vazia de alvenaria sem pintura talvez abrigasse os caseiros guardiões do campo, que servia aos políticos em tempo de campanha, quando aterrissavam seus helicópteros e monomotores comprados com o dinheiro público e suado dos impostos do povo. Nada mais. 

A casa por fora parecia limpa e um jardim de plantas escuras com flores duras estava rodeado de pedras formadas em círculos. 

Havia um poço que olhei e gritei, seco, duro com um eco morto. As janelas lembravam antigas casas americanas.

Olhei para o campo e lembrei de minha infância. O sol se desfazendo naqueles capins numa altura de quase um metro, finos, brilhando e se movendo com a mesma energia de muitos anos atrás, livres como os pequenos aviões que haveriam de ter pousado por ali. 

Demos meia volta e retornamos à aldeia.

Quando chegamos, havia café e pão nos esperando na cestinha em cima da mesa da cozinha. 

Minha mãe sentada na cadeira de madeira conversava com sua velha amiga. No outro dia partiríamos.

Das neves me presenteou com um abano de fogão a lenha feito de palha tecido num formato de cabana, por uma senhora que vende farinha. Um belo presente. Nessa mesma noite, me despedi de das Neves.

Anoiteceu e todas as estrelas do mundo não pararam de piscar.

E foi assim que espionei a noite através de uma outra pequena porta que serve como olho mágico das portas antigas.

Senti toda a aldeia em peso com suas luzes dentro de mim: a lua, as três marias e o sereno gotejando acima dos postes.

Havia o aroma da aldeia. O aroma de um adeus pronunciado. 

O mesmo aroma daqueles tempos imemoriais em que minha mãe e meu pai nos levava de jipe para viajar por uma infinita rota de estradas perigosas. 

Eram tempos difíceis e fáceis, mas havia juventude e infância, um tempo inesgotável de ideias e fascinação.

Amanheceu e então partimos. 

Olhei com ternura por trás do retrovisor a miragem do rio Grande. 

Meus olhos marejaram, vi o carro de boi de seu Chiquinho fazendo barulho nas rodas atravessando a parte menos profunda do rio e seu boi bebendo água. Atrás, havia ainda uma grande selva.

Então sumimos, eu e minha mãe comendo poeira pela estrada. Com a mesma fome de aventuras.

A estrada sem asfalto tem a pele do mesmo povo que a habita, castigados pelo sol e pela falta das árvores frondosas que um dia existiram por ali.

Estávamos no meio do nada, olhando através de uma visão lateral, toda aquela imensidão de pasto, onde o gado magro mastigava o capim entremeado de secura. 

Ao redor, não havia mais fontes, árvores ou rios, tampouco o que se lamente, porque nesse momento transitório, estão todos adaptados ao seu novo destino.






















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