O DIA PERDIDO? (texto de Josette Lassance)

PONTEVEEDRA, ESpanha – JULHO DE 2017


SUBI AS PRIMEIRAS escadas ofegante. A mala leve com poucos pertences me trazia a um mundo leve, mas não havia certezas. Meu único deleite seria olhar para a mala velha que carregava com muito gosto, minhas poucas roupas e alguns cadernos. Na surrada bolsa de mão, duas canetas, o passaporte e uma divertida coleção de isqueiros. Mas não fumava. Não acreditava na crença do charme de que toda mulher moderna deveria fumar. Apesar, havia vontades estranhas em carregar algo forte e ancestral, como o domínio do fogo.
Dobrei a rua após uma grande subida e uma rotatória. Ponteveedra parecia maior que os mapas conferidos. Olhei para trás e vi o que deixei, uma visão de dupla partida: a rodoviária e a estação de trem.
Não compreendi o porquê da moça – a vendedora de passagens da empresa ALSA, ainda faltando exatos 15 minutos para fechar sua minúscula cabina de vendas, refrigerada por um ventilador branco e sujo de pequenos grãos de poeira que viria das ruas – ter mentido que não havia troco para a passagem e que precisaria “cambiar” o dinheiro, e mais, precisaria descer para entregar ou pegar uma encomenda – enquanto isso me deixou esperando esse instantinho – presa ao relógio por mais de três horas, após dizer: - Já volto!  Como se a palavra fosse sua verdade. – Mentirosa! Fiquei presa à mercê de um imenso relógio de um terminal rodoviário. O mesmo relógio desmentia as informações dessa maldosa moça. Mas a ficha caiu mesmo foi quando observei de perto os horários de venda em letras miúdas, expostas na vidraça da cabina. Próximo horário? 16:30. Mais o horário do próximo ônibus de retorno a Sansenxo: 17:30.
Enquanto isso, a moça de olhos azuis egocentricamente fizera de propósito, afinal ela possuía um certo poder. E o que dá poder aos homens faz substituir-se qualquer desejo insatisfeito. Tive a impressão imediatamente que ela correra para os braços de seu namorado passionalmente desejando ter outro emprego que não a tornasse tão obsoleta, tendo se destinado um poder de uma forma simplista em empacar uma pessoa em se tornar dependente de sua presença.
E que eu teria que esperar ou me aventurar numa cidade desconhecida. Esperei por uma hora e meia naquelas cadeiras vermelhas e gordurosas num grande salão vazio. Fui até a lanchonete e pedi um salgado, que estava frio e com um gosto indigesto. Avisei à vendedora e ela não se lamentou. Pouco se importou na verdade. Qual país do mundo numa rodoviária se incomodaria em servir salgados com gostos caseiros?
Viajantes apressados não necessitam de um bom paladar. Sua fome os bastaria.
Não aguentando mais o peso das horas, com um silêncio vigiador, fui pedir informações na sala de informações que não havia informações, tampouco mapas da cidade.
Saí da rodoviária a esmo e segui em linhas retas, subi as escadas de uma rua onde havia cafés, panificadoras e alguns bancos de madeira disponíveis. Entrei numa confeitaria e comprei doces maravilhosos. Comi degustando iguarias desconhecidas. Pareciam doces de latas amanteigadas da fábrica Palmeira, a qual não lembro o paladar, mas as embalagens históricas que minha mãe recontava das histórias de aromas e sabores. Hum. Hoje é lembrada com buraco da Palmeira, onde um estacionamento quase abandonado e sujo em sua parte subterrânea, ajudam a desmoronar ainda mais as imagens históricas da cidade de Belém.
Entrei na loja chinesa e uma campainha tocou. Uma chinesa sorriu com cifras de euros nos dentes. Os chineses não pensam em mais nada senão em cifras. Como os americanos e a parte mais chinesa pertencente a um nicho perdido de bugigangas vagabundas. Hong Kong, o pesadelo dos sonhos dos consumistas. O mundo vai acabar entre o lixo e o lixo mais o lixo. Entre montanhas e nichos de riquezas e ricos magnatas com dentes de ouro. Tao perdidos quanto eu neste mar de plásticos. Saí da loja quase sem respirar. Não havia necessidade.  Aliás, após algumas horas, a única loja deste sábado aberta seria a dos chineses. Às vezes penso que os chineses apenas comem e vendem. Ou seria uma herança dos americanos. O que Mao tem a ver com isso? Se estivesse vivo, não deixaria.
Entrei na rua. Olhei para os horizontes: Havia outdoors, mas nenhuma outra informação que me conformasse. Andei como uma alma perdida entre quarteirões e ruas desconhecidas. Atravessei a rua e fiquei parada, olhando gaivotas brincarem num espaço vazio cercado por uma cerca forte de arame. Havia uma poça d’água onde se banhavam e bebiam, ao redor de uma pista de cimento mal formatado. Capins bem verdes e altos pareciam organizados tornando o espaço mais atrativo a quem passasse por ali. Ao fundo, o led verde de uma farmácia piscava. O barulho dos carros era ensurdecedor, parecia que alguns tratores espalhados trabalhavam numa grande obra.
Não entendi muito sobre essa cidade. Mas há o que se entender sobre cidades aonde nos perdemos de propósito?
A mala parecia querer pesar quando dobrei a rua, após ter observado as grandes aves já acostumadas aos ruídos das cidades. Por pouco tombou, poderia abrir ali mesmo, na calçada e certamente iria expor minhas intimidades, mas os cadernos escritos, se voassem para dentro daquele espaço protegido pela cerca de arame? Eu teria que voar também para agarrá-los como tesouros vivos? Não há guardas por aqui, por certo voariam para longe dentro do vento friozinho como se uma nuvem tivesse encostado no sol e desse uma pausa ao calor. Meus cadernos escritos valem ouro. Pelo menos para mim. Não importa a fama, o dinheiro quando se tem o prazer e a felicidade de escrever.
Hoje é sábado e por acaso aquela mocinha estranha e egoísta da rodoviária me fez perder um dia de sol na praia de Sansenxo. Poderia estar com Karol, Mercê, Roberto, Begoña e Ramón em cima de uma pedra quente, sentindo a ventania escassa de uma baía sem holas (ondas). Poderia estar mergulhando em suas águas claras e cheias de pedras com limo, observando os peixes graúdos proibidos de pescar porque são venenosos para comer. Na orla da pequena praia, os banhistas aproveitam o máximo da ternura quente que o sol possa os oferecer. As crianças com suas cestinhas de pesca, as senhoras jovens fazendo topless, meus amigos de molho no sol nas cadeiras e nas grandes toalhas macias espalhadas no dorso das pedras. As gaivotas dando grunhidos de liberdade, e o sol se expandindo até quase dez horas da noite. O verão traz mais cores a tudo isso. Enquanto as estátuas frias continuam presas às pedras enfeitando os olhares de todos os tons.
Mas estou aqui, dentro de uma cidade desconhecida e não podendo me afastar do círculo vicioso das ruas cruzadas e próximas da estação de trem e da rodoviária.
Decido voltar. A mala não abre com o vento, foi apenas um ruído surdo quando a coloquei no chão. Enxugo o rosto com um pouco de suor e retorno à rodoviária. Tentarei o wifi. Sento perto do café sem graça após ter subido as escadas. Me sento torta, tentando absorver ou roubar um sinal de wifi. Mas é inútil. Tento o free, mas é limitado, consigo um pouco do facebook. Então ouço música brasileira e descubro que meu ídolo Luis Melodia faleceu. Fico triste. Tenho poucos ídolos. “lava roupa todo dia, que agonia...”, minha música preferida. É a cara do Brasil. A bateria me nega o resto, dá apenas para enviar um recado pela perda de meu ídolo e tenho poucas curtidas.  Não tenho o que ler. Não pude levar livros para o caminho. Me contento em apreciar algumas notícias de revistas expostas nas máquinas de comprar. Nem ouso comprar, hoje não é meu dia, talvez o que salve seja minha intenção em poder escrever este texto.
Sentada para o nada, senta um homem ao meu lado, e não sei porque cargas d´ água soube que sou brasileira. Talvez pelo meu sotaque ao “ hablar” como o homem do birô das informações. E aquele papo objetivo nojento de homem sujo. – Você é brasileira! Mulher brasileira é quente. Quer se deitar comigo? Assim, dessa forma mesmo. Nessa objetividade mesquinha. Perguntei a idade do indivíduo: trinta anos. Religião? Muçulmana. Depois me propôs casamento. Queria uns dez filhos, disse a ele que era uma senhora quase idosa de 54 anos para ele se afastar. Então fui sentar na ponta oposta da fileira de cadeiras alaranjadas, na verdade, vermelhas.
O relógio não ajudava. Finalmente 16:30. Em ponto. Fui até a cabina da venda de passagens da ALSA. Um homem grosseiro passou na minha frente da fila para se informar de horários. Eu o interrompi. Ele se valeu da atenção da moça egoísta vendedora, sem se importar com a ordem da fila. Esperei reclamando quase numa súplica e não aguentei o xingamento. Me fiz metralhadora e a chamei de mentirosa.  Ela não teve tempo de responder. Depois me disse que havia retornado 10 minutos depois para me vender a passagem. A chamei de mentirosa ao cubo e de pessoa má, porque a esperei por quase uma hora, e que ela não teria nenhum sentimento com as pessoas. Ela não se calou em seu espanhol, tampouco me calei em meu português. A xinguei de mentirosa. Ela me vendeu a passagem. Mostrei o passaporte e fui para o guichê de compras para Sansenxo. O ônibus sairia somente às 17:30. Teria que aguardar pacientemente mais uma hora. Agora sem livro para ler, sem internet, só me restaria a raiva contida. Por ser estrangeira, jamais me dariam razão. Reclamar para quem? Engoli a raiva e o choro.
Que hora demorada. Fui ao banheiro fazer xixi umas cinco vezes, depois de engolir mais de um litro de água. As portas do banheiro continham recados, desenhos, números e rabiscos. Como em qualquer banheiro público do mundo inteiro. A moça da limpeza aparentava ser africana. O banheiro estava limpo e organizado. A água escorria fria, como se saísse derretida de uma garrafa de vidro do fundo de um rio com neve.
No horário certeiro o ônibus chegou. Desci e atravessei a rua próxima a um letreiro de um hotel. Os amigos não estavam no piso. Pensei. Dei uma volta pela praia em vão. Coloquei a mala na varanda do apartamento (piso). Retornei ao prédio e arrisquei a campainha. Minha amiga estava lá e sorria. Pedi desculpas pela demora.  Tomei um banho e fui almoçar. Mais tarde fui à praia encontrá-los. Todos estavam felizes. Ficamos rindo até o mais belo pôr do sol. Meu primeiro pôr do sol em Sansenxo.
Foi um dia perdido?



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